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A FUGA DA LETRA H

  • ruiplp
  • 16 de set. de 2020
  • 10 min de leitura

Atualizado: 17 de out. de 2020


A FUGA DA LETRA H

Dizem que se começa um conto com: “Era uma vez…”, mas eu quero começar de uma forma diferente. No “Mundo da Imaginação” tudo existe, mas tudo é ficção, e na terra dos dicionários, se fecharmos os olhos, mando eu e mandas tu! Por isso, fecha os olhos e imagina com força que o dicionário é uma terra onde encontras a tua imaginação. É a terra onde as letras, depois de ligadas, fazem palavras e as palavras, assim felizes, iniciam frases, que bem juntas, fazem contos de encantar e histórias que embalam o sono com sonhos tranquilos.


Assim, a sussurrar, te conto em segredo que dentro de um dicionário existe uma cidade onde as letras têm vida e emoções, agem tal e qual como nós, têm família, vão à escola e brincam entre si.


E por falar em brincadeiras, a letra A, nas corridas, chegava sempre em primeiro lugar. Era uma verdadeira líder! O mesmo não acontecia com a letra O, que preferia comer gomas e gelados a qualquer actividade física (apesar de todas as recomendações da letra P, a pediatra da terra dos dicionários).


No desporto rei, o futebol, as letras C, H, J e G eram especialistas, mas a letra C destacava-se por ser o Cristiano Ronaldo do sítio - não havia jogo que não terminasse com 2 ou 3 golos da autoria da letra C. Já à baliza, quem fazia boas defesas, ora com luvas ora sem luvas, era a letra G.


Tal e qual como na terra dos humanos, na terra dos dicionários as escolas tinham disciplinas como Português, Matemática, História, Geografia e Música. No entanto, existia uma disciplina que era a preferida da letra H: Educação Cívica - que era em tudo uma continuação do que lhe ensinavam em casa. Sinónimos de amizade, respeito e amor eram, não só falados, como também discutidos com exemplos dados pela professora Esperança, que, não só ensinava, como também transmitia paz, tranquilidade e serenidade! Tinha como objectivo criar a harmonia na turma, na escola e, com a sua delicadeza, acho que se lhe deixassem, no mundo inteiro.


Era frequente dizer à letra H, quando a sentia mais triste e em baixo, frases como: “Força, não desistas! Acredita mais em ti e mostra o que vales.“, mas na verdade sabia que a H precisava primeiro de acreditar em si.

A letra H sofria em silêncio apesar de estar aparentemente bem disposta e sorridente.

Poucos sabiam que a H vivia infeliz. Era sempre a última a ser escolhida para as brincadeiras e era constantemente ignorada. Como diziam, era tratada com a mesma insignificância que a própria letra tinha. Riam por não ter som e diziam que era uma letra sem importância.


Na disciplina de Matemática tentava fazer amizade com outras letras, mas não conseguia. O professor Quadricula tinha criado uma aula de substituição para os alunos com mais dificuldades na sua disciplina e, aos sábados de manhã, tinha como ajudante a letra H. Como esta não tinha dificuldade, queria ajudar os colegas a atingirem tanta compreensão na disciplina como ela.


Era hábito ouvir o professor dizer-lhe quando todos saíam:


- H, porque deixas que te tratem assim? Porque mesmo assim ainda te dispões a ajudá-los?


- Porque, professor Quadricula, eu acredito, e foi-me ensinado que não devo fazer aos outros aquilo que não gosto que me façam a mim. E acredito que um dia tudo isto irá mudar e eles irão me ver como amiga – respondia triste a letra H. Não entendo porque me fazem o que fazem! Porque me gozam e me chamam de insignificante - continuava a H a responder ao professor Quadricula.


Todos os dias regressava a casa em lágrimas e triste. H não compreendia porque não lhe davam valor e não tinha ninguém a quem considerar amigo, excepto a sua mãe e a letra S, com quem mantinha as grandes conversas e que sempre foi uma letra com quem podia contar!


Era frequente vê-lo a “viajar” nas aulas de História e Geografia, ambas dadas pela professora Mapa, onde muitas vezes os temas abordados eram a origem das novas palavras, das palavras em desuso e até de estrangeiras. A professora Mapa vivia tudo com bastante intensidade, emoção, com garra e energia. Vivia cada explicação com brilho no olhar!


Quando mostrava e ensinava como o mundo do dicionário tinha sido criado, cada descoberta era vivida com entusiasmo e intensidade, e H viajava no brilho do seu olhar. Como deveriam ser belas todas as terras por descobrir, todo o mundo para lá do dicionário. Imaginava, com o seu coração, que existiria alguma terra onde tudo era respeitado e tudo teria o seu valor. Um mundo perfeito!


Certa vez, ao regressar a casa, depois de mais um dia de humilhações, decidiu fugir! Queria ir para bem longe dali e talvez descobrir outra terra, no imaginário, onde pudesse ser feliz. Queria transpor a linha, o rio das pontuações, e ir à descoberta. Era necessário saber o que estava para lá de …


Foi caminhando, caminhando pelas linhas dos significados, ainda na terra do dicionário, e chegou à capa. Era ali a fronteira para entrar noutras terras da imaginação. Sentou-se e contemplou o rio que o atravessava e chorou. Chorou tanto que as suas lágrimas e o som do seu sofrimento acordaram uma caneta que dormia perto do local.


A caneta aproximou-se, sentou-se junto a ela e perguntou:


- Porque choras? O que te põe tão triste?


- Não tenho qualquer utilidade! Nem som tenho! Sozinha…sou nada! Sou uma inútil! -respondeu a soluçar a letra H


- A sério? É isso que pensas sobre ti? Ou é o que os outros querem que tu penses? Ironicamente, respondeu-lhe a caneta:


- Já pensaste que estás a reagir da maneira como eles querem que tu reajas?! Ao ficares assim estás a dar-lhes força para pensarem como pensam e agem! A resposta está em ti!

 

- Mas ninguém gosta de mim! Todos gozam comigo. Eles têm razão! - disse a letra H, enquanto limpava as lágrimas.


- Talvez não interesse tanto o que os outros pensam, mas sim o que tu pensas de ti própria! - afirmou a caneta, olhando fixamente para os olhos da H.


A caneta levantou-se, foi buscar uma folha em branco, levou-a para junto de H e disse lhe:

- H, o que vês diante de ti? – questionando-a e apontando para a folha de papel.

- Uma folha de papel - afirmou a letra H

- É pena que vejas apenas uma folha de papel e que não consigas ver a sua utilidade. É nela que ganho importância; as letras juntas constroem todas as palavras existentes. Combinadas, essas palavras criam frases que têm o seu poder, mas muito porque são escritas numa folha de papel. Na sua simplicidade, acolhe os textos onde podemos viajar na nossa imaginação.


- É verdade! Tens razão! - concordou a letra H.


- E contigo acontece o mesmo! Lembra-te que sozinha podes não construir nada, mas sem ti não existiriam palavras lindas como MARAVILHA. Não poderia existir no mundo real nem HOMEM, nem MULHER. Já verificaste que países como HOLANDA ou HUNGRIA não existiriam?! Estás a ouvir este som? É a letra E que está a tocar. Sabes que este som poderia não ser possível se tu não existisses?! É uma HARPA! E o que faríamos com todos os HUGOS e HELENAS que vivem por aí se não existisses? Cada coisa tem a sua importância. Sozinha ou acompanhada cada letra tem o seu valor. Devemo-nos orgulhar do que somos! Não são os outros que nos têm de respeitar; tu é que deves respeitar-te em primeiro lugar! Agora levanta-te! Quero te mostrar algo para entenderes melhor! Vamos viajar um pouco de balão de ar pela tua terra e pelas terras todas que imaginas que são mais e melhores que a tua!


Partiram num enorme balão pintado com todas as cores do arco-íris. Nesse momento, H viu uma confusão instalada……….pela sua ausência. Ninguém se conseguia entender. Não havia um texto redigido e nem um livro a sair para as bancas. As crianças sofriam porque já não existiam histórias de encantar, já não havia verbos, já não havia alegria. As frases ditas ou escritas, as que teimavam em existir, não faziam sentido. Todos sabiam que a letra H tinha fugido e agora todos imploravam pelo seu regresso. Lá de cima, do alto de umas nuvens tão azuis e de um sol tão luminoso, H não continha as lágrimas!


A caneta foi mais corajosa e ultrapassou horizontes para ir mais além. Foi para a terra das pessoas, dos Humanos, onde a língua não era esta que estamos a ler. Foi até à língua universal, o Inglês. Ao chegarem lá, depois de verem a beleza dos monumentos e a diversidades das ruas, verificaram que estavam vazias, não havia ninguém. Estavam em Londres!


No ar sentia-se medo, insegurança, incerteza e parecia que estavam no deserto. Admirada, H questionou:


- O que se passa por aqui, Caneta? Onde estão todos?


- Em casa. Têm de estar! Foi-lhes pedido para estarem em casa e esperarem que um tal de “vírus perigoso” se fosse embora. Estão todos tristes. - respondeu a Caneta.

- Mas, Caneta, o vírus vai passar! É importante manter a fé e a esperança, não é?! - respondeu H, com preocupação!

- Sabes que não podem! Como se escreve Esperança em Inglês, sabes? - perguntou a Caneta. HOPE! É assim que se escreve! E agora, que desapareceste, não podem escrever, pronunciar ou pensar nessa palavra porque, quando fugiste, ela deixou de existir!


Agora vive nas pessoas apenas o medo e a tristeza! - respondeu a Caneta.

- Mas eu não queria …. eu não tinha essa intenção …. eu não podia imaginar…! - H estava completamente admirada com o resultado da sua fuga.


- Não sabias, pois não, que tinhas tanta importância?! Que tantas palavras dependiam da tua vontade de aparecer e ficar! Aposto que nem os outros sabiam da tua vontade de te dares a ti própria importância. Está na hora de te dares valor! Cada letra tem a importância que tem! Uma letra sozinha ou somada a outras, pode transformar, não só o mundo da Imaginação e da Fantasia, como outros mundos, em algo muito melhor! - respondeu a Caneta. Já compreendeste a tua importância?! Já compreendeste que não importa o que os outros pensam ou fazem, mas sim o que tu pensas sobre ti e a forma como te respeitas? Só tu podes entender e mudar isso!


- Muito obrigada, minha amiga! Agora consigo ver para além do que via! Sou eu que tenho que me ver de outra forma! Contigo consegui entender que uma letra como eu, que nem som tem, pode conseguir, com ajuda das outras, traduzir tantas coisas maravilhosas e fazer o mundo dos humanos mudar a sua postura na vida. HOPE (ESPERANÇA), deixa-me voltar!!!! Tenho tanta para ensinar e tanto para construir na minha terra. É de lá que saem as palavras e elas não podem viver sem mim, da mesma forma que eu não posso viver sem elas! - implorou a letra H.


- Sim, vamos voltar. Mas antes gostaria de te contar uma coisa que me aconteceu há muito tempo. Eu era apenas uma caneta acabada de chegar à terra dos dicionários, dos textos, dos livros, e pensei que não tinha qualquer importância. Afinal quem era eu? Uma simples caneta que desliza em tons de azul ou preto e constrói umas frases. Achava que era apenas medíocre, apenas isso. Perante a minha postura, os outros também desvalorizaram a minha importância, a minha utilidade. Houve quem dissesse que eu, em comparação com os computadores, tinha os dias contados. E sabes o que fiz? - questionou a Caneta.


- O quê? – perguntou H.


- O mesmo que tu fizeste, minha amiga letra H! Fugi para bem longe! Fiquei escondida e chorei. Desejei nunca mais escrever. Perder até à última gota de tinta! – respondeu a Caneta. E continuou:


 - Mas um dia, os computadores deixaram de trabalhar, também devido a um vírus, dizem. Tudo parou naquele momento! Não havia nada escrito e estava em causa até a continuidade da terra dos dicionários. Eu, longe, de nada sabia. Foi a folha de papel que me procurou durante horas, dias e semanas, e então me encontrou. Contou-me que um dia, por ser só uma folha branca, também ela duvidou da sua importância. E também ela, com a ajuda de outras folhas, recuperou a sua autoestima e autoconfiança. Nessa altura, resolvi voltar e foi até o computador, que se julgava tão importante, que me pediu desculpas e ficou meu grande aliado na mudança e na importância de mim mesma. E é por essa razão que te peço, com esta experiência, para voltares, explicares a tua ausência, ensinares e fazeres algo com o que aprendeste - propôs a Caneta.


- Estou preparada para voltar! - Disse a letra H


- Mesmo?! - perguntou a caneta. Já reconheces a tua importância?


- Sim, já sei o que fazer. – indicou, sorrindo, a letra H


- Vamos embora! Vou colocar a direcção no GPS deste balão de cores bonitas! - disse a sua amiga Caneta.


- Caneta, antes de ir, preciso de te perguntar uma coisa. Essa falta de respeito que os outros têm sobre mim, que tiveram sobre ti e que têm sobre todos os que são um pouco diferentes, tem nome? - perguntou H, já no regresso a casa.


- Tem sim, minha letra amiga, a palavra para simbolizar até tem pouco tempo. Mas o que é, o que faz, o mal que provoca e toda a tristeza que acarreta, já existe há muito tempo. Chama-se agora bullying. É uma palavra forte que tu, como moras na terra dos dicionários, saberás procurar e produzir! explicou a caneta.

- Tem de ser feito alguma coisa! – afirmou determinada a letra H.

H voltou à sua terra, explicou a sua ausência e pediu desculpa por não ter estado presente nos últimos tempos.


Em casa pesquisou sobre esse tal de “bullying” e viu o seu significado: “uso da força física, ameaça ou coesão, para abusar, intimidar ou dominar agressivamente outros, de forma frequente e habitual.”


H pensou que algo teria que ser feito para melhorar o presente e construir um futuro melhor, para que mais nenhuma letra tivesse que sofrer sozinha.


Marcou uma reunião com a professora de Educação Cívica e juntos resolveram que as aulas seriam uma muleta para um grupo a criar em prol do bem-estar e felicidade de todos. Seria um movimento do tipo “Stop Bullying!”. Não só tinha como objectivo desenvolver a autoestima e confiança, e posteriormente ensinar autocontrole às vítimas, mas também trabalhar o agressor que, muitas vezes, ele próprio uma vítima de bullying.


Todos os dias começaram a existir, na aula de Educação Cívica, reuniões para auto ajuda, onde cada um podia contar o que o incomodava. A partir desse instante era feita uma reunião entre a professora Esperança, a letra H, o agressor e a vítima. O agressor não era tratado como o mau da fita, mas era feito um trabalho de investigação para ser verificado porque aquela letra procedia daquela forma.


Passou a falar-se mais vezes sobre a importância da compaixão e da ajuda ao próximo. Quando aparecia alguém era mais frágil, pegava-se-lhe na mão e ajudava-se a criar mais força para que, sozinho ou com outros, pudesse brilhar. Porque todos temos importância, todos merecemos respeito e todos devemos nos respeitar e amar!


A letra H, por último, pediu mais uma viagem por terras inglesas, para verificar se já haviam recuperado a HOPE necessária para acreditar em dias melhores. No balão com as cores do arco-íris, verificou que, apesar de continuarem em casa para se manterem em segurança e garantir a segurança dos mais velhos e por isso mais frágeis, conseguiam agora sorrir e fazer os olhos brilhar. E tudo porque existia esperança em dias melhores - os dias em que poderiam novamente voltar a sair e a respirar, sem medo de nada!


H voltou para a sua casa, com a certeza de que nada será como antes. Tudo muda quando acreditamos em nós!


Ao voltar foi feita uma festa para a receber, onde todos lhe deram os parabéns por tudo o que tinha alcançado e tudo o que de bom tinha trazido à sua terra!


Agora os tempos de lágrimas foram substituídos por tempos de sorrisos. A letra H acreditava na sua importância e tem agora respeito por si própria e acredita no seu valor! Também conseguiu transmitir essa importância a todas as letras do abecedário. Vive feliz na sua condição de letra importante e as outras letras aprenderam a sua importância e agradecem a sua presença.

Ana Sofia Gonçalves


 
 
 

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