top of page

O Amor não tem cor

  • ruiplp
  • 8 de fev. de 2021
  • 10 min de leitura


Cristina Soares vem de uma família abastada, mas não deixa que essa condição lhe mude a maneira de ser. Com 14 anos, gosta de conhecer pessoas e outras realidades, bem diferente da sua mãe Amélia, que sempre viveu num mundo onde a convivência apenas se fazia dentro do mesmo estrato social.


José Soares é o pai, um homem com uma visão grandiosa. Empresário de sucesso no ramo da hotelaria, partilha com a filha a vontade e o prazer de viajar, conhecer pessoas, culturas novas e diferentes. Para ele, as pessoas contam pelo que são por dentro, não importando a profissão, o estrato, ou os bens que têm.


Cristina sempre frequentou um colégio privado, desde que se entendia por gente. Mas chegou o momento de dizer basta. Decidiu continuar os estudos numa escola pública e iniciar essa aprendizagem de pessoas novas, novas culturas e formas de viver. Iria para a nova escola de transportes públicos e acabar-se-iam as mordomias. Queria entender as dificuldades!


Desde o início teve o apoio do pai, mas a reprovação da mãe. Amélia não queria acreditar, e ainda menos aceitava a bênção do seu marido, ao que considerava ser um disparate e uma afronta da sua filha.


Chegou setembro, e Cristina, determinada, chegou à sua nova escola. Era ali que começava uma nova Cristina! Tinha medo, receio que não a aceitassem, mas com coragem seguiu em frente, em direcção ao pavilhão C. Sentia-se insegura, pequenina, muito pequenina e, de súbito, aquele edifício, aquele pavilhão, tomava as proporções de um arranha-céus. Avançou e, com os olhos postos na porta 5, aguardou a chegada da professora de Matemática. Uma mão tocou-lhe no ombro, e alguém atrás de si disse:


- Olá, eu sou Ayana! E Tu? Como te chamas?


Virou-se devagar e ao avistar Ayana, uma menina de olhos brilhantes e sorriso rasgado, respondeu:

- O meu nome é Cristina e sou nova por aqui! Ayana, que giro o teu nome! - Exclamou Cristina curiosa.


- Sou oriunda de Angola e o meu nome significa Linda Flor! - Explicou Ayana.


- Nasceste em Angola? - Questionou Cristina.


- Sim, assim como toda a minha família, mas estou em Portugal desde os 5 anos de idade.


- Respondeu Ayana.


- Eu nasci em Cascais, e toda a minha vida foi vivida em Cascais! - Disse Cristina. Mas tenho o sonho de conhecer o mundo, conhecer as pessoas que nele vivem, seus hábitos, sua cultura, sua alimentação….enfim tudo! E tu, tens sonhos? - Perguntou Cristina a Ayana.


- Sim! Quero juntar-me a grupos de pessoas e percorrer o mundo a ajudar. Ajuda médica e social! Dar ao mundo o que eu acho que o mundo precisa …. Amor e compaixão! O Mundo precisa de se amar mais e respeitar-se mais. Somos todos filhos do mesmo Deus e habitamos todos este planeta que é a nossa casa, então porque não nos tratamos como uma família que se ama? É isso que quero fazer, seja lá isso o que quer que seja! - Disse Ayana, sorrindo.


Os sonhos juntaram as duas meninas, e uma grande amizade nasceu naquele exato instante!

Passavam os intervalos das aulas a falar sobre sonhos, viagens e sobre as suas realidades tão diferentes. Cristina estava apaixonada pela cultura Africana, e queria aproveitar a experiência desta amizade, tão diferente, para conhecer mais! No meio de vivências e estilos diferentes de vida, sabia que era mais o que as aproximava do que o que as afastava!


Uma sexta-feira, com as duas horas de almoço como era costume, Ayana convidou Cristina para almoçar em sua casa. A casa de Ayana ficava num bairro muito perto da escola, e o almoço seria servido na coletividade local, gerida pela mãe de Ayana, Vitória. A coletividade funcionava como uma escola de Artes, para todos os meninos e meninas que queriam ter acesso a alguma forma de arte. A finalidade era criar objetivos aos adolescentes, e tirá-los das ruas. Funcionava com grande dificuldade, e todos contribuíam com o que podiam. O canto, a música, o teatro, a pintura, a cerâmica e a dança eram disciplinas lecionadas por habitantes locais, que queriam contribuir para uma sociedade melhor. Dali já tinham saído grandes artistas para o conservatório de música e até para o teatro.


Cristina estava fascinada! Não só com a Muamba de Galinha e a Moqueca de Bacalhau, tendo sido difícil escolher qual a melhor, mas por toda a alegria e pelo amor, amizade e carinho com que foi recebida. Foi recebida de braços abertos pela mãe de Ayana mas, triste, sabia que isso nunca iria acontecer com a sua mãe. Nunca Amélia iria receber de braços abertos Ayana. Nunca iria aceitar que a sua “princesa”, como ela assim a chamava, de olhos verdes e cabelos louros, tivesse como amiga uma pessoa de cor diferente!


Certo dia, ao chegar a casa, Amélia esperava-a para uma conversa. Tinha tido conhecimento das horas de almoço no bairro, e isso não lhe agradava nada.


- Cristina, precisamos de falar sobre a tua amizade com essa menina Ayana! Parece-me que passas demasiado tempo com ela, no bairro dela, e isso não me agrada! - Indicou Amélia.


- Mãe, não passo muito tempo no bairro dela. Vamos apenas às sextas-feiras, porque almoçamos na colectividade gerida pela mãe da Ayana. Sei que embirras com a Ayana pela sua cor mas, se a conhecesses ias gostar muito dela e da família dela! – Respondeu Cristina.


- O quê? Eu, e esse tipo de gente, aqui na minha casa?! - Exclamou Amélia.


- Esse tipo de gente?! Que tipo de gente mãe? Negros? Refere-se a esse tipo de pessoas? Pessoas que me acolheram, que me receberam bem, que me tratam bem. É a esse tipo de pessoas que se refere? - Disse furiosa Cristina.


- Uma menina de família, como tu és, não devia de estar metida em bairros e coletividades… – Disse Amélia.

- Uma menina de família? Que família? Todos somos meninos de família. Eu sou de uma família e a Ayana é de outra família. Ayana Felicidade, é o nome dela e o nome da sua família! Aqui tens o nome de família que querias! Estás errada mãe! Vê as pessoas como pessoas, e não de acordo com o estrato social ou a cor! E, para mim, esta conversa acabou. – Disse Cristina, levantando-se do sofá e subindo as escadas que davam para o quarto.


José que, entretanto, tinha entrado em casa, assistiu a uma parte da conversa entre mãe e filha e decidiu sentar-se ao lado da esposa e tentar chamá-la à razão.


- Amélia, querida, não devias dizer essas coisas à nossa filha! Ela nunca se desviou do caminho do bem! Confia nela! Ela saberá distinguir as boas pessoas das que não o são! - Pediu José a Amélia.

- Então, achas bem que ela se misture com pessoas de bairro, pessoas que não conheces? – Perguntou Amélia, admirada com a calma do marido.


- Amélia, a Cristina escolhe as suas amizades! Sabe fazer isso muito bem! E, se não conheces a Ayana e a sua família, é porque não queres. Desculpa não estar a teu lado nisto, mas penso que essa tua cabeça, e essa tua forma de ver o mundo, vão acabar por te distanciar da Cristina! Faço intenção de conhecer o bairro, a coletividade e toda a família Felicidade. Nunca vi a minha filha tão feliz! Acho que devias fazer o mesmo! - Anunciou José.


- Nunca! Nunca! Nunca! - Repetiu vezes sem conta, à medida que se levantava do sofá e tentava apoiar-se na mesa.


Amélia sofria, desde há muito tempo, de diabetes. A doença tinha avançado muito nos últimos dois anos afetando-lhe a visão. Estava quase cega. A sua capacidade de distinguir cores ou formas cada vez era menor, e apenas a bengala era a sua ajuda durante o dia. Ficava horas sentada no sofá, no inverno, a ouvir as suas músicas preferidas e, no verão, numa cadeira em frente ao jardim.


Amélia era pianista e cantora de ópera, e desde o aparecimento da doença que se tinha refugiado em casa triste e isolada, sem vida social. Eram poucas as amigas que frequentavam a sua casa, e isso preocupava muito José. Já tinha tentado contratar uma pessoa para fazer companhia à esposa, mas Amélia tratava de embirrar com todas, ainda na entrevista. José temia pela sua segurança, sozinha em casa apenas com a empregada doméstica que, pelos seus afazeres, não tinha tempo nem vontade para fazer companhia a Amélia.


Entretanto, o Natal aproximava-se e com ele as festas da coletividade! José e Cristina foram convidados para fazer parte da festa! Cada um contribuiu com o que podia e, chegado o dia, a festa fora um verdadeiro sucesso! José tinha ficado de pedir, junto dos seus clientes, pequenas contribuições que geraram um contributo muito importante. Cristina, junto da escola, com iniciativas que envolveram vendas de rifas, donativos e venda de artigos em segunda mão, conseguiu uma importância elevada que permitiu a compra de material para os projectos da coletividade.


No final da festa, José pediu ajuda a Vitória. Seria a pessoa ideal para acompanhar os passos e ajudar Amélia em casa. Sabia que seria um desafio, uma vez que Amélia poderia não aceitar Vitória mas, por outro lado, seria uma lição de vida para Amélia, se tudo corresse bem. Vitória concordou e, uma vez que Amélia já estaria incapaz para reconhecer a fisionomia de alguém, iria conhecer a essência de Vitória, e não a sua cor.


José apressou-se a dar a boa nova à sua filha, e ambos estavam confiantes que poderia correr bem!


Vitória foi apresentada a Amélia e começou, desde cedo, a tomar as rédeas da situação. Vitória ensinou Amélia a plantar, a sentir mesmo sem ver. A sentir o cheiro da terra, o cheiro das flores, a ouvir música e a saber apreciá-la. Amélia começou novamente a tocar piano, incentivada pela nova amiga. Vitória caminhava de braço dado com Amélia enquanto lhe falava sobre arte, geografia, política e sobre os vários livros que tinha lido.


Tudo corria bem! Até que um dia, o tema da conversa foi o racismo e, dadas as palavras pouco simpáticas proferidas por Amélia, Vitória resolveu apresentar-se na íntegra a Amélia, dizendo-lhe:


- Amélia, queria pedir-lhe para me descrever, por favor! - Pediu Vitória.


- A Vitória é alegre, simpática, delicada e dedicada. É culta e atenciosa, uma verdadeira amiga! - Disse Amélia, sorrindo.


- E se eu fosse negra? Era uma desilusão? - Perguntou Vitória.


- Negra? Que disparate! - Exclamou Amélia.


- Como pode ter essa certeza? Nunca me viu! - Experimentou Vitória.


- É verdade que nunca a vi, mas também é verdade que estive com a Vitória o tempo suficiente para entender que não poderia ser! - Disse segurando a mão de Vitória.

Vitoria colocou a mão de Amélia no seu cabelo, e passou a mão de Amélia pelo seu rosto! Amélia sentiu que tinha estado enganada em relação à amiga.


- Vitória, você enganou-me! - Disse zangada Amélia.


- Não! Quem estava enganada, durante este tempo todo, era a Amélia, mas não por mim! Pela educação, pela sociedade, mas não por mim! O que houve na nossa amizade foi verdadeiro, e a Amélia sentiu-o no coração, e o coração não vê, apenas sente!

Os olhos atrapalham o que o coração sente! Eu sou a mãe da Ayana, e foi com muito amor no coração que estive ao seu lado! As pessoas não são as suas cores, as pessoas são os seus nomes e os seus valores! Acorde Amélia! Os seus olhos morreram, mas não morreu a sua alma, a sua vida, e tudo se pode tornar muito melhor quando passar a sentir as pessoas! - Explicou Vitória.


Amélia, sentindo-se enganada, convidou Vitória a sair. Não perdoava tamanha mentira a todos quantos sabiam da verdade, e a esconderam. Vitória saiu, deixando Amélia em lágrimas.


O tempo foi passando, e Amélia parecia determinada a não perdoar a família e a Vitória!

Os meses passaram, e Amélia sentia-se cada vez mais doente, cansada e sem energia. José marcou uma consulta, primeiro de clínica geral, e foram marcados vários exames e análises. Certo dia, numa consulta de urologia, o diagnóstico foi revelado: os rins de Amélia estavam a falhar, era necessário um transplante e a situação era grave.


Depressa foram movimentados nas redes sociais pedidos de ajuda. Na coletividade e na escola foram divulgados pedidos de ajuda, mas sem sucesso. As pessoas que tinham vontade de ajudar não eram compatíveis, e começavam a escassear as ofertas. Ayana e Vitória eram o apoio dentro de casa de Amélia e a família.


Certo dia, depois de tratar de Amélia (mesmo contra a sua vontade), Vitória segurou-lhe na mão e disse:


- Quero saber se sou compatível com a Amélia! Tenho dois rins óptimos e se puder ajudá-la a viver doando um. assim farei. – Disse Vitória.


- E porque o faria? A mim? - Perguntou Amélia, admirada.


- Por si, pela sua filha, pelo seu marido e pela mudança no mundo, pela humanidade, pela compaixão e pelo respeito que lhe tenho! - Respondeu Vitória.


- Depois de tudo, ainda tem respeito por mim? - Continuava a questionar, admirada, Amélia.


- Porque tem o direito de ser racista, talvez alguém a tenha feito sofrer, e talvez tenha sido alguém de raça negra, por isso… eu entendo. Acredite que também há pessoas que já me magoaram, de raças diferentes da minha, mas não fez com que odiasse todos, não fez com que olhasse para a sua família com discriminação. Entende? Respeito-a pelo que é, mas não posso permitir que nos maltrate, ou que maltrate qualquer pessoa! Eu reconheço o amor que existe em si, e sei que foi muito feliz nos tempos que passou comigo, em que lhe mostrei o outro lado da sua visão sobre as coisas. Eu quero que viva com saúde e com muita felicidade, com muito amor, e definitivamente aprenda a ouvir, a falar, e a ver com o coração.


Ame em vez de odiar! Experimente! É libertador! - Respondeu Vitória, com as lágrimas nos olhos.

- Perdão Vitória! Já há muito tempo que gosto de si, mas por teimosia, não queria admitir, e sim tem razão! Foi a sociedade e a educação recebida em casa, talvez por algo que se tenha passado no passado, que levou os meus pais a me criarem com esta raiva! E agora, que estou às portas da morte... - Dizia Amélia, emocionada e segurando na mão de Vitória.

- Agora, tem a oportunidade de fazer tudo melhor, da melhor forma, com um melhor sentimento. Aprender a amar é possível, quando quisermos. Veja o ser humano como algo único, e por isso, avalie as suas qualidades não a sua cor. Tenha a coragem de aprender a viver livre de preconceitos! - Desafiou Vitória.


As duas abraçaram-se comovidas!


Foram feitos os exames de compatibilidade, e o resultado era o melhor possível! Amélia poderia receber um rim de Vitória!


O dia da cirurgia chegou, e o transplante foi um verdadeiro sucesso! Ambas recuperaram da cirurgia e, de cama lado a lado, deram as mãos e decidiram ser família, compartilhando os bons e os maus momentos, ajudando-se com o verdadeiro sentimento de Amor!


Os dias de Amélia mudaram, e nunca mais foram tristes e solitários! Passou a dedicar os seus dias a ajudar Vitória na coletividade, e a desempenhar o papel de professora de piano. Passou a ter um papel ativo no peditório anual, e entregou-se à causa com a verdadeira vontade de ajudar!

Para trás, ficou uma Amélia amarga e de mal com a vida. As famílias passaram a conviver juntas, para felicidade de todos, em especial para Cristina e Ayana!

As duas jovens foram convidadas por José a fazerem parte de um projeto desenvolvido pela coletividade, e patrocinado pela sua empresa, para viajarem até Angola e iniciarem um projeto semelhante ao da colectividade. Não podiam estar mais felizes, bem como as mães orgulhosas do trabalho em conjunto!

Ana Sofia Gonçalves



 
 
 

2 Comments


anamariajesusorama
Apr 13, 2021

Sofia, obrigada pela partilha. Gostei bastante dos contos que já li, tanto pela maneira simples e assertiva das suas palavras, mas principalmente , pela enorme sensibilidade e humanismo que nos transmite, sendo as ilações, que deles tiramos, o norte, o caminho, pelos quais devemos guiar e caminhar...ao longo da nossa vida!

Muitos êxitos, Sofia!

Beijinhos, assinalando hoje, também, o Dia mundial do Beijo, mesmo que ainda sejam virtuais!

Ana Maria Fragata

Like

ruippereira
Feb 08, 2021

Adorei este conto! Obrigado :-)

Like
bottom of page